história baseada no quadro “Notívagos” - 1942, do pintor americano Edward Hopper
- Oi.
- Oi.
Não se
sabe ao certo quanto tempo levou até ela tomar a iniciativa, disse
novamente:
- Oi,
esperando que dessa vez ele olhasse.
- Oi, ele
respondeu, dessa vez demonstrando um pouco mais de interesse, mas
ainda sem se virar para ela.
Estavam
dentro de um bar localizado num cruzamento de ruas movimentadas,
porém, pelo horário já tardio da noite, não se via movimento
nenhum na rua, que era iluminada por uma luz meio opaca vindo de
algum poste ali por perto. A faxada do bar era toda de vidro,
qualquer um que passasse pela calçada poderia ver o lado de dentro:
um balcão triangular, dentro dele um garçom. De frente para o
garçom, um homem e uma mulher, ele, usando roupa social e um chapéu,
ela, batom e vestido vermelho, cabelos loiros. Do lado oposto a eles
no balcão, um outro homem também usando roupas sociais e tomando
café, completamente indiferente aos outros no bar.
- Oi, ela
falou novamente, arqueando um pouco a sobrancelha e olhando para a
ponta da unha do dedo médio esquerdo. Eles estavam muito próximos
um do outro, a cena soava quase como um flerte.
- Oi, ele
respondeu, olhando para um ponto fixo do lado de fora do bar.
Lá fora
parecia que nada poderia quebrar o silêncio daquela noite que
pretendia ser mais uma como todas as outras, e na verdade seria
mesmo. Quem passasse pela calçada do bar naquele exato momento,
teria o sentimento de que o tempo ali tivesse sido congelado.
- Por que
você veio aqui? Ela perguntou.
- Bem,
você me pergunta isso todas as noites não é?
- É, mas
é engraçado...
- O que é
engraçado?
- É
engraçado porque a cada vez você sempre responde uma coisa
diferente, então, por que você veio aqui?
- Você
tem razão, é por isso que nossas vindas aqui tornam esse café tão
interessante. Eu escrevo.
- Sobre o
quê? Ontem você disse que fazia quadros, ela disse, e riu.
- Ora,
pensei que você fosse mais observadora, nós estamos dentro de um
quadro, eu o terminei de pintar ontem, ocorre que hoje estou
escrevendo sobre ele.
- E onde
está o papel então?
- Garçom!
ele disse, ao passo que o garçom, que estava lavando alguns copos na
pia repentinamente o atendeu:
- Sim,
pois não? Num tom cordial.
- Você
teria um papel e caneta?
- Sim
senhor, aqui está, pegando um bloco de papel e uma caneta de tinta
azul que estavam próximo ao caixa.
-
Obrigado. Agora, você vê que essa mulher não acredita que estamos
dentro de um quadro?
O garçom
que já ia se virando para a pia para voltar aos seus afazeres, se
volta ao homem usando terno, fitando com um ar curioso, e diz:
- Bem
senhor, nem todos tem uma capacidade de observação tão aguçada
não acha? Nesse momento, ele olha para a mulher com vestido vermelho
- que por sua vez parecia não ter notado as últimas palavras do
garçom, e continua – Talvez a senhora não tenha notado que ontem,
esse outro homem de terno, desse outro lado do balcão, não
estivesse aqui - o homem ao qual o garçom se referiu, ao ser
mencionado não teve nenhuma reação, continuou tomando seu café.
- Não,
não estava mesmo, ela concordou, porém sem mostrar nenhum espanto
ou inquietação, dessa vez olhando para a ponta da unha do dedo
médio da mão direita.
- Logo,
veja bem que a pergunta que a senhora fez a esse senhor ao seu lado
se faz necessária todas as noites, e creio que os dois vem aqui
todos os dias justamente pelos mesmo motivos.
- E quais
seriam esses motivos? Ela pergunta, e pela primeira vez olhando nos
olhos do garçom, com uma curiosidade sincera, porém não
acreditando que ele soubesse a resposta. Ele, por sua vez, se
aproxima dela e num tom muito carismático responde:
- Pelo
motivo de que todo quadro necessita de personagens não é? Só assim
poderia se criar uma boa história...
Com um
leve aceno de cabeça a mulher concorda, e nesse momento, o homem de
terno, como se ele mesmo tivesse acabado de escrever a sua própria
história particular, guarda o bloco de notas em seu bolso e vai em
direção a porta de saída, ainda sem encarar o olhar da mulher ao
seu lado, e, passando pela porta, atravessa a rua ao lado oposto do
bar para seguir seu trajeto. A mulher de vestido vermelho, por sua
vez, toma o último gole de conhaque em seu copo e também sai, segue
pela calçada à direita.
O garçom,
vendo que os dois últimos clientes saíram, apaga todas as luzes do
bar, mudando a placa da porta para fechado, sai, a tranca pelo lado
de fora e vai embora tomando o caminho da esquerda, dobrando a
esquina, e quando olha pela última vez para dentro do bar pela
faxada de vidro antes de continuar seu caminho, se dá conta de que
o outro homem de terno havia ficado trancado no bar. O garçom para,
observa o homem vendo as suas costas e pensa se é melhor voltar e
convidá-lo a se retirar, mas percebendo que ele ainda não tinha
terminado de tomar o seu café, achou melhor não o importunar, fez
um leve gesto com os ombros continuou o seu caminho de volta para
casa.
Quadro
que já inspirou algumas cenas de filmes de cinema, principalmente os
filmes do gênero 'noir', “Notívagos” é um dos quadros mais
conhecidos do pintor Edward Hopper, falecido em 1967.
Vindo da
geração de pintores do 'realismo', Hopper adicionava às suas
imagens, elementos que pudessem trazer um certo distanciamento entre
os elementos, causando uma sensação de isolamento entre os
personagens, mesmo que em algumas situações eles estivessem
próximos, como no quadro já citado acima.
Nele,
temos o homem e a mulher sentados, porém, indiferentes um ao outro.
Temos também o homem de frente para o casal e de costas para o
espectador, com uma postura de quem não está se importando em nada
com o que está ocorrendo ao redor, e por último, temos o
balconista, que poderia representar a tímida tentativa do espectador
de estabelecer algum contato visual com algum dos outros três
personagens solitários na pintura. O fato de a luz dentro do bar
ser o único ponto de luz no quadro inteiro, potencializa ainda mais
a sensação de afastamento dos personagens do quadro com relação
ao mundo exterior.
Assim, é
que o pequeno conto acima dialoga com o quadro de Hopper: dois
personagens que, mesmo se vendo todos os dias, não se conhecem, pois
acabam sempre caindo no mesmo assunto, fazendo as mesmas perguntas, e
sem manter nenhum tipo de contato visual; um homem sentado de frente
para o casal, mas que não esboça nenhuma reação diante do diálogo
dos outros três personagens e ainda acaba sendo deixado sozinho no
bar depois de fechado e por último, o garçom, único que tenta
manter um contato visual com o casal.
Conheço muitas imagens. são bem reais.
ResponderExcluirgostei do post.